Após uma semana de conflitos, persistem dúvidas cruciais sobre a invasão russa na Ucrânia. O g1 ouviu especialistas que afirmam que ainda é cedo para respostas definitivas no sétimo dia da guerra. Mas, mesmo com ressalvas, eles aceitam o desafio de construir análises que já apontam respostas para as seguintes perguntas:
- Qual o objetivo da Rússia?
- Por que a Rússia ainda não tomou Kiev?
- Putin montou uma estratégia para provocar menos mortes?
- O que o presidente russo não previu sobre a invasão?
- Quais as falhas na estratégia militar russa?
- As sanções contra a Rússia adiantaram?
Abaixo, veja as análises dos estudiosos, que mostram o que se sabe até agora sobre algumas das principais questões envolvendo a estratégia militar da Rússia e da Ucrânia no conflito.
1 – Qual o objetivo da Rússia?
Um transportador de pessoal blindado russo queima em meio a veículos utilitários leves danificados e abandonados depois de lutar em Kharkiv, Ucrânia. — Foto: Marienko Andrew/AP Photo
Retomar a influência russa sobre a Ucrânia é, talvez, a maior das prioridades imediatas.
“Putin disse no discurso que não reconhece o direito da Ucrânia como um outro Estado independente. Ele não admite a Ucrânia enquanto Estado soberano, que ele vê como um fantoche do Ocidente, e quer incorporar a Ucrânia para a esfera de influência russa”, avalia Carlos Gustavo Poggio, doutor em relações internacionais.
Ana Paula Tostes, especialista em Europa/Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), explicou – em entrevista à GloboNews – outro aspecto desta busca por influência, que ficou menor com os resultados das urnas no país vizinho.
“Antes de Zelensky, havia uma alternância de poder entre líderes mais ‘pró-europistas’, mais pró-ocidentais e líderes mais pró-russos dentro da Ucrânia. Foi isso que se rompeu desde 2019 com a vitória em segundo turno de Zelensky. Do ponto de vista da reestabilização, da dominação russa sobre a Ucrânia, o que se tem dito é isso: que o objetivo de Putin seria tomar Kiev e recolocar em Kiev um líder político que poderia ser seu marionete.”
A busca por influência sobre o país vizinho tem na outra face da moeda a busca por evitar a aproximação do país com o Ocidente e a própria expansão da Otan no Leste Europeu, sobretudo em suas fronteiras.
“O que é crucial pra ele [Putin], e ele deixou isso muito claro lá atrás, desde a década de 1990, quando não tinha poder, mas desde que assumiu, sobretudo na crise da Geórgia, que Geórgia e Ucrânia são inegociáveis do ponto de vista da Rússia. Na mente dele, precisa ter a Ucrânia como um estado-tampão que assegure aquilo que ele chama de profundidade estratégica, com uma dimensão também política. Do ponto de vista dele, está reagindo ao que percebe como ameaça do Ocidente, da Otan, da União Europeia.”
2 – Por que a Rússia ainda não tomou Kiev?
Quatro dias após o início da guerra, Kiev oferece resistência aos ataques russos
A capital de um país é sempre ponto sensível de uma disputa entre dois lados. E apesar de supostamente ter forças bélicas muito maiores que a Ucrânia, não é de interesse da Rússia levar adiante uma guerra sangrenta, com muitas mortes civis. “Quanto maiores as perdas civis, mais desgastada fica a ocupação”, comenta Ramalho.
Em entrevista à GloboNews, Vitelio Brustolin, professor do INEST/UFF e pesquisador de Harvard, explica que, antes de tomar uma cidade, as forças militares do país invasor bombardeiam e entram com blindados e infantaria.
Outro ponto diz respeito à resistência de Zelensky, algo que tem surpreendido a todos — o ucraniano, que fica baseado na capital, recusou ajuda dos EUA para deixar o país.
“A estratégia dele [Putin] deu errado. Tudo indica que o principal objetivo era tomar Kiev, sem dúvida, mas muito rapidamente. Isso não funcionou. Provavelmente, ele apostou que o Zelensky não resistiria, ele subestimou a capacidade de liderança dele”, avalia Ramalho.
3 – Putin montou uma estratégia para provocar menos mortes na Ucrânia?
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de cerimônia diante do Túmulo do Soldado Desconhecido em Moscou, em imagem de 2016 — Foto: Pavel Golovkin/AP
Pode parecer paradoxal, mas nem Putin quer uma guerra sangrenta neste momento, porque isso custaria um desgaste da sua imagem inclusive dentro da Rússia.
“Eles [russos] não podem bombardear totalmente o território ucraniano porque isso seria o início da Terceira Guerra Mundial. A Rússia poderia acabar com essa guerra, sim, se quisesse, sem nem usar armas nucleares; ela poderia bombardear a Ucrânia, as principais cidades, e acabar com a guerra, mas ela não pode fazer isso”, avalia Brustolin.
“Haveria uma reação forte e imediata do Ocidente, inclusive entrando com atos de força, porque teria que conter a Rússia. E segundo porque isso mataria milhões de civis”, completa.
4 – O que o presidente russo não previu sobre a invasão?
25/02/2022 – Manifestantes em Roma exibem cartaz com a imagem de Vladimir Putin com um bigode de Adolf Hitler e uma suástica, símbolo nazista — Foto: Guglielmo Mangiapane/Reuters
Além da resistência de Zelensky e do próprio povo ucraniano, nem Putin nem o mundo esperavam uma acolhida tão forte dos vizinhos europeus — numa conferência da ONU, mais de 100 diplomatas levantaram e deixaram a sala durante uma fala transmitida por vídeo do ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov. Vale lembrar, mais uma vez, que até a Suíça, tradicionalmente um território neutro, tomou partido em favor da Ucrânia.
“Tudo pegou ele de surpresa. Ele apostou que o Ocidente iria ficar meio afônico, meio perdido, iria demorar para dar essa resposta e quando desse essa resposta ele já teria tomado o país inteiro. Todas essas premissas dele se tornaram equivocadas. Talvez ele não esperasse uma reação dos cidadãos ucranianos como está acontecendo agora. Houve uma resposta forte dos ucranianos, houve uma resposta rápida e forte do Ocidente. Isso atrapalhou bastante o plano dele”, aponta Poggio.
Para Ramalho, a invasão russa teve como resposta uma reação rápida e harmônica da comunidade internacional. “A União Europeia finalmente se coloca de uma maneira assertiva, agindo, não só como unidade, mas de uma maneira muito rápida. E tem as surpresas, como é o caso da Suíça, que saiu da sua neutralidade. Isso é raro, não se esperava isso.”
Ramalho também levanta outro ponto: a invasão aconteceu pouco após a saída de Angela Merkel do cargo de primeira-ministra da Alemanha.
“O que o Putin errou, ao meu ver, foi presumir que isso não aconteceria, sobretudo pela saída da Angela Merkel [ex-chanceler alemã], que era uma grande líder. E o Emmanuel Macron [presidente da França], tentou se colocar como um substituto, mas está em plena campanha eleitoral”, diz Ramalho.
“Putin escolheu o timing pensando nesses desvios de atenção. Ele não esperava a reação que houve. Agora é uma situação bem mais complicada, porque também do ponto de vista da Rússia, não vale a pena, já que isso pra ele significa perder a paz, significa um outro Afeganistão”, avalia Ramalho.
5 – Quais as falhas na estratégia militar russa?
Como o tempo ainda é curto para uma avaliação mais concreta, fica difícil apontar falhas por completo por ora. Mas há um fator a se observar: a (falta de) legitimidade da guerra na visão dos próprios russos.
“Talvez as Forças Armadas de Putin não sejam tão preparadas quanto a gente pensava. Do ponto de vista logístico, o Exército russo parece que tende a ser famosamente defeituoso. E me parece também mais fundamental a questão de capacidade e a questão de vontade, a ponto de convencer os soldados russos da legitimidade dessa missão”, pondera Poggio.
E adiciona: “Já há alguns sinais de que soldados russos nem sabiam o que estavam fazendo na Ucrânia. Esse é um problema de comando e de treinamento dos soldados que, se eu não me engano, só ficam um ano, são jovens, não têm uma ideologia muito forte de proteção e nacionalismo, não está muito claro o ojetivo da guerra”.
E, mais uma vez, a questão do tempo: Putin talvez tenha avaliado que essa seria uma guerra mais curta do que está se desenhando.
“O Putin fez uma estratégia de que essa seria uma guerra muito rápida, uma guerra-relâmpago. Os soldados russos tiveram a informação de que eles seriam abraçados pela população local. E é verdade, porque havia províncias separatistas onde, com certeza, eles foram bem recebidos. Agora, por outro lado, isso não acontece em outros locais. O fato de eles não conseguirem, por exemplo, ocupar Kharkiv, que é a cidade muito ao leste do território ucraniano, está ali pertinho da Rússia, é um indicativo do problema que as forças russas enfrentam”, diz Brustolin.
6 – As sanções contra a Rússia adiantaram?
Ramalho não vê com otimismo as sanções anunciadas até agora, mas se surpreende com o movimento de empresas privadas que anunciaram boicote à Rússia por conta própria.
“As sanções nunca funcionaram. Mesmo esse tipo de sanção que foca mais nas pessoas, no entorno, normalmente se restringe a isso. Você olha para o que aconteceu em Cuba até hoje, olha o que aconteceu com o Irã, e não dá para ter otimismo com a eficácia e a efetividade de sanções. Entretanto, o que a gente está vendo agora é uma adesão voluntária de empresas.”
E o professor ainda toca num paradoxo já tratado pelo podcast O Assunto em episódio que foi ao ar em 24 de fevereiro: quanto mais amplas as sanções, maior a chance de atingirem seu objetivo coercitivo, mas também maior a probabilidade de um efeito bumerangue, com perdas não apenas para a Rússia.
“É uma faca de dois gumes, porque o Ocidente, de um lado, fere fortemente a Rússia no curto prazo, mas enfraquece o seu próprio sistema financeiro e a influência que tem sobre o sistema financeiro no médio e longo prazo.”
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