Aos réus foi assegurada defesa, houve divergência, e prevaleceu a Justiça. É hora de virar a página do radicalismo
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Não há como deixar de reconhecer o caráter histórico do julgamento que condenou Jair Bolsonaro e mais sete réus por planejar e tentar pôr em marcha a ruptura da ordem institucional democrática estabelecida pela Constituição de 1988. Depois de inúmeros golpes de Estado e tentativas frustradas desde a fundação da República, pela primeira vez um ex-presidente, ex-ministros e militares de alta patente foram condenados por atentar contra a democracia no Brasil. O período mais longevo de vida democrática brasileira não apenas resistiu à intentona, mas enfim o Brasil conseguiu punir traidores da vontade popular.
Os ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram que Bolsonaro, os ex-ministros Braga Netto, Augusto Heleno, Anderson Torres e Paulo Sérgio Nogueira, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, o deputado federal Alexandre Ramagem e o ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid são culpados. Pelos crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, participação em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, a Corte condenou Bolsonaro a 27 anos e três meses, Braga Netto a 26 anos, Torres e Garnier a 24, Heleno a 21, Nogueira a 19. Pelos três primeiros crimes, Ramagem foi punido com 16 anos, um mês e 15 dias, além da perda do mandato. Cid recebeu dois anos em regime aberto, em virtude de seu acordo de colaboração.
A todos os réus foi assegurado amplo direito de defesa. Não faltou espaço para a argumentação de seus advogados, nem para divergências entre os julgadores. O relator, ministro Alexandre de Moraes, e os ministros Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin votaram pela condenação dos oito réus pelos cinco crimes. Terceiro a votar, o ministro Luiz Fux apresentou ao longo de 13 horas na última quarta-feira uma divergência profunda dos demais colegas. Depois de argumentar que o Supremo não era o foro adequado para o julgamento, defendeu em seu voto que os réus não incorreram nos crimes de organização criminosa e dano ao patrimônio. Fux ainda votou pela aglutinação dos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, condenando apenas Cid e Braga Netto por este último. Absolveu-os e a todos os demais réus — inclusive Bolsonaro — de todos os demais crimes.
A divergência de Fux, ainda que repleta de contradições — ele próprio condenara os réus do 8 de Janeiro por crimes semelhantes e aceitara a denúncia contra Bolsonaro e os outros acusados antes de considerar o STF inepto para julgá-los —, é a maior prova de que o julgamento foi justo. Num órgão colegiado, discordâncias são naturais e esperadas. É justamente para que não prevaleça a opinião de um único juiz que casos dessa complexidade e relevância devem ser submetidos a vários. Fux contemplou em seu voto todos os argumentos da defesa, garantindo aos réus o direito ao contraditório. Mas, diante da eloquência das provas, esmiuçadas pelos demais ministros, tais argumentos não prevaleceram. No confronto de opiniões, a balança da Justiça pendeu então para a condenação.
As digitais de Bolsonaro na tentativa de golpe estão por toda parte — da campanha mentirosa e premeditada para desacreditar as urnas eletrônicas às minutas jurídicas destinadas a emprestar um verniz de legalidade à intentona, apresentadas em mais de uma ocasião aos chefes militares. Há declarações gravadas em reunião ministerial, encontro com embaixadores e comícios; depoimentos dos ex-chefes das Forças Armadas; mensagens de texto, áudios, anotações e documentos impressos — uma fartura de evidências e detalhes cujo sentido está no quebra-cabeça montado pela investigação da Polícia Federal. Graças a ela, os brasileiros têm plena consciência do que aconteceu e sabem como e por que, felizmente, a democracia prevaleceu.
Terminado o julgamento, o Brasil precisa agora virar a página do radicalismo autoritário. O Supremo deu exemplo de altivez, mesmo diante da inadmissível e persistente pressão externa de Donald Trump e de outros integrantes do governo americano. É provável, diante da condenação de Bolsonaro, que novas sanções dirigidas a integrantes da Corte estejam a caminho. Mas o Brasil não pode ceder a barganhas mesquinhas. Seria uma capitulação inaceitável a votação de qualquer anistia pelo Congresso. Para além da neblina criada pela disputa política, os parlamentares precisam enxergar a realidade com nitidez.