Depois de um ano de conquistas espetaculares, incluindo um ouro no Mundial de Antuérpia, no qual desbancou Simone Biles, a número 1 do mundo, Rebeca torna-se a maior ginasta brasileira e se prepara para a Olimpíada de Paris. Nesta entrevista, a infância pobre, o comprometimento absoluto com os treinos, os medos e os sonhos da atleta que é uma das maiores promessas de medalha para o Brasil
Por Manuela Azenha, redação Marie Claire — do Rio de Janeiro
Conseguir um horário com Rebeca Andrade não é tarefa fácil. Em ano olímpico, uma missão quase impossível. O primeiro turno de treino da maior ginasta brasileira da história vai das 8 horas ao meio-dia, quando pausa para almoçar, fazer terapia – que realiza quinzenalmente desde os 13 anos – e descansar. Volta para malhar às 15 horas e então começa mais uma leva de treinos, das 16 às 19h30. O único dia livre é domingo, com tardes de folga às quartas e aos sábados.
Rebeca chegou ao estúdio na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, onde foram feitas as imagens desta capa de fevereiro de Marie Claire, do jeito que sempre está: alegre, de sorriso aberto e com o tempo contado no relógio. Vestindo uma camiseta branca curta, calça jeans surrada e tênis branco, a atleta de 24 anos e 1,55 metro poderia ser facilmente confundida com uma estudante vindo da faculdade.
A pressa no horário de saída desta vez não é por causa de um compromisso esportivo. Rebeca precisa buscar seus cachorros, Lázaro, um border collie, e Snow, um west terrier, na creche onde passam o dia. Em homenagem a eles, fez uma tatuagem no antebraço: uma mão segurando uma pata de cachorro, envolvida por uma linha vermelha, símbolo de “conexão de sangue”, ela explica. Também usa um colar com um pingente de cachorro, presente dado pelo treinador da vida inteira, Xico Porath. “O Lázaro é a Rebeca adulta, cansada. Já o Snow sou eu criança, revoltada. Não para quieto por um minuto”, conta a ginasta.
Após o Natal com a família em sua cidade natal, Guarulhos, São Paulo, Rebeca treinou até o dia 30 de dezembro e passou a virada de ano em Maricá, região metropolitana do Rio, com Xico, a quem tem como um pai, familiares dele e amigos. No dia 3 de janeiro já estava de volta ao ginásio do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), vizinho do apartamento onde vive na Barra.
Essa é a rotina que leva desde os 10 anos de idade, quando comunicou à mãe, Rosa, que gostaria de sair de Guarulhos e viver em Curitiba com o treinador, sua então esposa, Keli, e outras ginastas, para dedicar-se ao esporte profissionalmente. Aos 12 anos, entrou para a seleção brasileira e começou a competir.
A trajetória rumo ao estrelato do esporte mundial, no entanto, foi interrompida três vezes. Rebeca operou o ligamento cruzado do joelho direito em 2015, 2017 e 2019. A cada lesão, ficou oito meses afastada. Para uma ginasta isso geralmente significa o fim da carreira. Ela não só continuou no esporte, como foi depois da terceira cirurgia que alcançou todos os seus marcos históricos. Foi campeã na prova de salto na Olimpíada de Tóquio, em 2021, a primeira medalha olímpica na história da ginástica artística feminina do Brasil. Na mesma edição, conseguiu prata no individual geral, prova mais nobre da ginástica por incluir os quatro equipamentos: barras assimétricas, salto sobre a mesa, solo e trave.
No Mundial de 2022, mais um recorde alcançado: foi a primeira e única atleta brasileira a ser campeã no individual geral. Em 2023, outras tantas conquistas vieram. Foram cinco medalhas no Mundial da Antuérpia, na Bélgica, incluindo um ouro no salto, desbancando na final ninguém menos que Simone Biles, melhor ginasta do mundo. Nos Jogos Pan-Americanos de Santiago também foi destaque e voltou com mais quatro medalhas, sendo duas de ouro – no salto e na trave. Ao fim de 2023, a ginasta venceu pela terceira vez seguida o prêmio do COB de melhor atleta do ano.
Medo inexplicável
Para tornar seus feitos ainda mais incríveis, Rebeca revelou que treina e compete sem enxergar direito. Com pelo menos 2,5 graus de miopia de um lado e 2 graus de astigmatismo do outro – não sabe ao certo as medidas –, a ginasta prefere ficar sem lentes de contato quando está dentro do ginásio. Alega que já se habituou a realizar as séries com a visão turva e assim consegue lidar melhor com o que chama de um “medo inexplicável” diante dos equipamentos.
Para saltar, por exemplo, não enxerga bem o trampolim, mas sabe qual a sua marca – então faz a contagem das passadas de sua corrida na cabeça. “Dá para errar, mas não seria por não enxergar. Mesma coisa com a trave, não enxergo a ponta, mas já sei, sinto no aparelho, então tranquilo”, diz.
A primeira vez que reparou no problema de vista foi na Olimpíada de Tóquio, ao não conseguir ler o que estava no telão. “Na hora da competição, estou tão concentrada que não sinto nada. O medo é mais durante o treinamento, de cometer um erro, cair da trave, da paralela e se machucar. Faz tempo que isso não acontece, mas, quando sentia que me incomodava a ponto de me atrapalhar nos treinos, conversava com minha psicóloga e tentava me acalmar. Fazia exercícios de respiração, passava a série na cabeça antes. Hoje em dia tenho muito mais facilidade, respiro fundo e vou.”
A psicóloga a quem se refere é Aline Wolff. A importância desse trabalho em sua vida foi tão determinante que a ginasta resolveu estudar psicologia. Cursou dois anos, mas teve que trancar o primeiro semestre de 2024 para dedicar-se aos treinos.
Neste ano, Rebeca se prepara para disputar o que talvez venha a ser sua última Olimpíada na carreira. “Não sei, vai depender do meu corpo”, respondeu a Simone Biles, em meio ao Mundial de Antuérpia, quando a estadunidense a comunicou de seus planos de aposentadoria após os Jogos de Paris e perguntou se a brasileira faria o mesmo. Foi então que Simone, em um gesto que comoveu o mundo, ergueu da cabeça uma coroa imaginária e a colocou na cabeça da ginasta brasileira.
E qual o peso dessa coroa?, pergunto à Rebeca. “Não diria que tem peso. Vi como algo genuíno, espontâneo, de reconhecer a posição que ela tem na ginástica no mundo. Me orgulho demais em saber que posso continuar o legado dela. Não só eu, mas tantas outras. É o esporte que a gente ama. Foi um orgulho enorme tê-la de novo competindo, feliz. Foi uma energia incrível, uma das melhores competições de toda a minha carreira”, lembra.
Há outro momento de troca com Simone que a brasileira recorda com carinho, no Mundial de 2018. Rebeca havia operado o joelho em 2017 e estava voltando às competições. Ao término da edição, a caminho da festa de encerramento, Simone disse para Rebeca não desistir da ginástica, pois tinha muito potencial. “Só estávamos nós duas nessa hora. Ela não precisava ter dito nada, falou de coração. Mantemos essa relação de admiração”, conta.
O afastamento de Simone da ginástica artística, quando desistiu de uma prova em plena Olimpíada de Tóquio, foi um marco no esporte e provocou mudanças positivas, opina Rebeca. “Até então, ninguém falava de saúde mental. Agora entenderam que atleta não é robô, que temos que respeitar nossos limites.” Exemplo disso foi quando ela optou por não fazer o solo no Mundial de 2021, no Japão, para poupar o corpo. Foi a primeira vez que a brasileira e sua equipe tomaram uma decisão dessa em um campeonato de peso. “Já tinha conquistado medalhas importantes na Olimpíada, sentia um pouco de dor e sabia que não precisava exigir tanto do meu corpo”, explica. “Foi muito legal ser ouvida e terem respeitado minha posição. Espero que seja uma nova era. Pelo menos na ginástica brasileira feminina, já sentimos essa diferença de falar na cara o que está acontecendo, de termos essa abertura.”
Há quem diga que a ginástica artística é o esporte que mais exige dos atletas, ainda mais porque começam tão novos. Caso tenha filhos, Rebeca conta que não os incentivaria a praticar a modalidade, mas tampouco os impediria. “Quero que façam algum esporte, mas vou deixá-los escolher livremente”, diz a atleta – que tem planos de ser mãe no futuro. “Enquanto a criança mostrar que ama aquele esporte, apoio. Mas, se estiver fazendo mal e quiserem parar, abraço e levo embora. Sou assim, muito frouxa.”
Rebeca pisou num ginásio pela primeira vez aos 4. Sua tia, Cida, era da equipe de limpeza do Bonifácio Cardoso, clube de Guarulhos. Quando soube que haveria um teste para jovens talentos, levou as netas e a sobrinha. As treinadoras perceberam que Rebeca tinha potencial, e desde então ela nunca mais parou. Os primeiros anos exigiram enorme sacrifício da família. Mãe solo, Rosa sustentava os seis filhos – depois viriam mais dois – com salário de empregada doméstica. Para complementar a renda, fazia bicos em um restaurante. Nessa época, Rosa e as crianças chegaram a viver em um barraco de um cômodo e um banheiro. Do pai, Rebeca fala pouco e mal tem contato desde que ele se separou de Rosa quando a filha ainda era pequena.
Como a mãe passava o dia fora trabalhando, era o filho Emerson, então com 13 anos, que levava Rebeca aos treinos. A mãe cedia o valor da condução que recebia como doméstica para eles irem até o ginásio. Durante seis meses, Rosa caminhou duas horas para ir e outras duas para voltar do trabalho, todos os dias. Até que não aguentou mais e os filhos precisaram se virar para chegar ao ginásio. Nesse período, Emerson usou a grana que conseguiu vendendo latinha e papelão para montar uma bicicleta em um ferro-velho. “Nem freio tinha a bichinha”, diz ele. E passou a levar a irmã aos treinos na garupa.
A vida de Rebeca foi tomada por treinos e competições, mas quem é ela no pouco tempo livre que sobra? “Uma pessoa que dorme muito”, responde. Além disso, gosta de ver séries como Uma Família da Pesada, Friends e The Big Bang Theory. Também curte ir ao cinema e à praia. A atleta que mais admira é Daiane dos Santos, lenda da ginástica artística e com quem se identifica desde criança. Mas não hesita em dizer que também se inspira em si mesma: “Olhando para minha trajetória… Foi um início com dificuldades financeiras, tendo apoio de todas as pessoas. Devo ser realmente boa, porque pessoas ruins não são ajudadas. Sou de coração bom, genuína e grata a todos que passaram pela minha vida. Me inspiro muito em mim.”
Equipe
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