QUALIDADE DE VIDA E SUAS NUANCES SEMÂNTICAS E ETNO-CULTURAIS

José Carlos Souza; PhD em saúde mental; psiquiatra; especialista em Medicina do Sono; professor do curso de Medicina da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)

Num contexto histórico, determinar o período em que o termo Qualidade de Vida (QV) foi utilizado pela primeira vez ainda gera questionamentos. De acordo com Wood-Dauphine (1999), a primeira referência ao termo QV, foi realizada por Pigou no livro sobre economia e bem-estar, The Economics of Welfare (1920), que abordava o impacto das ações governamentais na vida dos indivíduos de classes menos favorecidas. Porém, em 1964, o então presidente dos Estados Unidos da América do Norte, Lyndon Johson ao declarar que “[…] os objetivos não podem ser medidos através do balanço dos bancos. Eles podem ser medidos através da QV que proporcionam às pessoas”, apresenta o termo QV em destaque na mídia.

De acordo com Fleck (2008), a partir da década de 1970, o conceito de QV surge como medida de saúde num contexto no qual os avanços da medicina moderna permitem o controle de sintomas ou o retardo de determinadas doenças. Prolonga-se a vida de forma amena ou devido às doenças assintomáticas. Houve então a necessidade da mensuração da QV de forma a verificar como as pessoas vivem mais.

A associação de padrões de vida, aspectos materiais e aquisição de bens, caracterizavam o termo QV como sinônimo de progressão e sucesso. As primeiras fases de evolução do termo QV, mediam-se o nível de satisfação do indivíduo com a QV e como esse alcança o consumo de bens de mercado, bens de saúde, lazer e outras características físicas e sociais do meio ambiente em que está inserido. Caracterizava-se então, uma visão micro-econômica de QV (BRITO, 2008).

O uso de indicadores econômicos, como por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que possibilita a fusão de dados econômicos como os enfoques sociais e culturais; passou a ser utilizado como indicador da QV, caracterizando assim sua ampliação (MINAYO; HARTZ; BUSS, 2000).

A incorporação da dimensão social e política ao conceito de QV aprofundam-se no Mundo Moderno. Esta incorporação à QV é relatada por Buarque (1993), ao ressaltar que do final do século XVIII e a partir do XIX, com a Revolução Industrial, a QV assumiu uma equivalência a viver no setor urbano, que disponibiliza máquinas para fazerem o trabalho pesado e controlar da melhor maneira a natureza.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), com o objetivo de tentar definir e uniformizar os ins­tru­mentos de avaliação de QV, criou o Grupo de Qualidade de Vida. Este grupo criou o questionário WHOQOL-100 (FLECK, 1999).

O desenvolvimento do WHOQOL seguiu os seguintes passos:

1º) Classificação do conceito de QV como uma abordagem transcultural, inclusive com a participação de antropólogos.
2º) Estudo piloto qualitativo.
3º) Desenvolvimento piloto: administração piloto em 15 (quinze) centros: das 2000 questões iniciais sobraram 300 questões.
4º) Teste de campo.

Os Domínios e facetas do WHOQOL são relatados a seguir (FLECK, 1999; SCHIPPER, CLINCH; OLWENY apud SPILKER, 1996):

1) Físico: dor e desconforto, energia e fadiga, sono e repouso.
2) Psicológico: ansiedade, depressão e medo.
3) Nível de independência.
4) Relações sociais: relações pessoais, suporte (apoio) social, atividade sexual, trabalho e associações vocacionais.
5) Ambiente.
6) Espiritualidade: religião/crenças.

Sobre as Questões do WHOQOL, seguiu-se alguns parâmetros:

  1. A) Basear-se nas sugestões dos pacientes.
  2. B) Relacionar-se com o conceito de QV da OMS.
  3. C) Refletir o significado das facetas.
  4. D) Linguagem simples.
  5. E) Questões curtas.
  6. F) Ser aplicável em várias disfunções.

As 2000 questões iniciais do WHOQOL foram reduzidas para 300 e posteriormente para 100, tendo o nome atual de WHOQOL-100. Algumas indicações do WHOQOL-100 são: intervenções de saúde; comparação de resultados; impacto de políticas de saúde, entre outros.

A tradução do WHOQOL-100 para o português foi feita por Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seguindo os seguintes passos:

1) Tradução.
2) Revisão por painel bilíngüe.
3) Grupos locais com a comunidade: em quatro grupos diferentes.
4) Incorporação das sugestões.
5) Retrotradução.
6) Reavaliação interativa da retrotradução.

Com o WHOQOL-100, a OMS tem, aos poucos, conse­guido uniformizar o estudo da QV; porém, muito ainda há para se fazer, buscando atingir um campo cada vez maior de pesquisas científicas sobre o amplo tema QV (fleck, 1999).

De acordo com Beraquet (2005), é comum verificarmos no cotidiano a QV sendo associada a um “bem-estar”, a um “estilo de vida”. O termo científico QV torna-se banalizado numa linguagem cotidiana e rotineira em diferentes segmentos sociais, em clínicas de estética, academias de ginástica, escolas, empresas, marketing de vendas, hospitais e tantos outros setores. Frente a esta situação, o estudo da QV necessita cada vez mais de um enquadramento científico.

Entretanto, não se tem até o momento um instrumento de pesquisa de QV para populações indígenas. Como também, nenhum dos citados acima foram validados para tais populações.

 

CONCEITO

Nas últimas décadas, tem-se falado muito em QV. Porém, nem sempre as definições apresentadas são precisas, claras e objetivas. Conceituar QV torna-se tarefa árdua, pois na grande maioria, as pessoas acreditam que saibam o que o termo quer dizer, ou sentem o que ele exprime. Tal situação deve-se ao fato de um conceito que remonta à Antiguidade e de ter sofrido, ao longo da história, inúmeras alterações em seu sentido (MOREIRA, 2000).

Para Souza (2004), devido às consequências de uma doença e seu tratamento, e a percepção do paciente em viver proveitosa e satisfatoriamente a vida, observa-se que definir QV representa uma tentativa de quantificá-la. A QV assume uma definição funcional, mensurável e evolutiva no decorrer dos tempos.

O mesmo autor ainda destaca que a QV deve ter uma validação transcultural, uma avaliação aprofundada; pois a QV, diferentemente de uma doença que tem um tempo de início definido, apresenta-se como uma variável contínua de toda uma vida (SOUZA, 2004).

O termo QV é usado em vários setores da sociedade e campos de estudos: saúde, filosofia, política, cidadania, religião,  economia, cul­tura, entre outros. Porém, os seus conceitos são diversos. Aqui entenderemos por QV um “conjunto harmonioso e equilibrado de realizações em todos os níveis, como: saúde, trabalho, lazer, sexo, família, desenvolvimento espiritual” (RAMOS apud CARDOSO, no prelo). Qualidade de Vida, para Wilheim; Déak (CARDOSO, no prelo), “é a sensação de bem-estar do indivíduo. Este é proporcionado pela satisfação de condições objetivas (renda, emprego, objetos possuídos, qualidade de habitação) e de condições subjetivas (segurança, privacidade, reconhe­cimento, afeto)”.

A rubrica da QV representa uma tentativa de quantificar, em termos cientificamente analisáveis, a rede de conseqüências de uma doença e seu tratamento, sob a percepção do paciente de sua habilidade para viver uma vida proveitosa e satisfatória. O que emerge é uma definição funcional de QV, mensurável e evolutiva através do tempo. A sua mensuração é subjetiva em dois aspectos: primeiro, muitas das dimensões acessadas não são, diretamente, mensuráveis fisicamente; e segundo, fica-se mais interessado com a visão do paciente sobre a importância de sua disfunção do que com a sua existência. Para muitos modelos de QV, o paciente serve como seu próprio controle interno. Deste modo, a estratégia analítica primária tem sido a observação das mudanças na QV durante o curso da doença. Isto evita duas limitações importantes para a generalização do conceito. A primeira é a cultural, representada pela diferença entre grupos sócio-econômicos ou étnicos. Há uma evidência recente de que uma elaboração funcional da QV deve ter uma validação transcultural. A segunda limitação refere-se a uma avaliação aprofundada da questão. Ao contrário de uma doença, que muitas vezes tem um tempo de início definido, a qualidade de vida é uma variável contínua de toda uma vida.

As questões que formam a base da avaliação podem ser reti­radas das experiências do paciente, de seus parentes e seus provedores de saúde, mas elas devem ser respondidas desde as perspectivas do paciente. Isto não exclui o impacto da doença nos parentes do paciente ou na comunidade. O que se quer saber é o que acontece com um paciente num parâmetro funcional. A definição de saúde está intrínseca a este conceito. Uma possibilidade é basear este modelo à definição da OMS: “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”. Esta é recomendável, mas inclui elemen­tos que estão longe de suprir a medicina tradicional e apolítica. As oportunidades de emprego, a educação e a segurança social são elementos importantes no desenvolvimento da saúde da comunidade, mas estes estão longe da meta imediata desta abordagem, que é o tratamento da doença (SCHIPPER, CLUINCH; OLWENY apud SPILKER, 1996). Esta definição está baseada na premissa de que a meta da Medicina é fazer desaparecer a morbidade e a mortalidade de uma doença em particular. O que se visa fazer é eliminar a doença e suas conseqüências e liberar o paciente como se ele não tivesse sido acometido pela doença.

 

ASPECTOS CULTURAIS

Foi na década de 1980 o grande crescimento das pesquisas na área de QV, nas diversas culturas. Vários estudos englobando inú­meras culturas vêm sendo desenvolvidos por agências filan­trópicas, agências de cuidados de saúde e instituições universitárias, entre outros. Estas pesquisas focalizam-se em questões que têm um impacto na QV, como a super-população, pobreza, terremoto, urbanização, industrialização, migração e campanhas de imunização. Daí a necessidade da inclusão de variáveis culturais na avaliação da QV (JOHNSON apud GUILLEMINAULT; LUGARESI, 1983).

O termo cultura é usado como um conceito científico por todas as ciências sociais. Não há ainda uma definição unânime de cultura. Na Antropologia cultural, cultura é geralmente definida como uma concepção e percepção fracionada da realidade que é social­men­te transmitida através de gerações. A cultura também inclui normas que regulamentam comportamentos e resultam em papéis distintos que definem “sociedade” como uma organização e interação de pessoas. Em resumo, cultura inclui os caminhos aprendidos e com­partilhados de como interpretar o mundo e interagir em socie­dade; e, ligado a isto, provém todos os indivíduos e idéias sobre o que é relevante ou irrelevante, válido ou inválido, na vida (JOHNSON apud GUILLEMINAULT; LUGARESI, 1983).

Cada cidadão possui diversos papéis sociais (marido, pai, amigo, médico, estudante, professor, contador, entre outros); a soma destes faz o seu “status” na sociedade. Estes papéis são prescritos pela sociedade, então a interação social está baseada em um consenso espe­cífico cultural concernente a apropriações de atos, idéias ou expec­tativas de uma pessoa, em um determinado “status”. As socie­­dades contemporâneas são muito diversas. Embora os mem­bros de uma sociedade compartilhem a mesma cultura, eles têm experiências e opiniões radicalmente diferentes no que concerne à QV. Uma sociedade pode parecer um grupo homogêneo quando vista superficialmente de fora, mas quando examinada, sistemática e profundamente, mostra-se heterogênea. Daí o plural “sociedades”, para designar os grupos compostos por membros de uma sociedade com a mesma ocupação, filiação religiosa e étnica, faixa etária, localização geográfica e ideológica, que podem ter certas particula­ridades, porém alguns pontos de vista e valores assemelham-se ao grande grupo. Esta ecologia cultural complexa confunde os pes­quisadores teórica e metodologicamente (SASAO; SUE apud SPILKER, 1994). Para avaliar a qualidade de vida com uma meta sensível culturalmente, os pesquisadores do relativismo cultural, têm a prática de analisar opiniões e comportamentos no  contexto da cul­tura na qual estão inseridos. O relativismo cultural poderia su­gerir que, embora haja valores universalmente aceitos e reconheci­dos (como a alimentação, o sono e a proteção), não há padrões ab­so­­­lu­tos de qualidade de vida que podem ser indiscrimi­nadamente apli­ca­dos a todas as culturas (JOHNSON apud GUILLEMINAULT; LUGARESI, 1983).

Há dois caminhos para um pesquisador avaliar a qualidade de vida: objetivo e subjetivo. As diferenças entre os dois são subs­tanciais e a troca de um para outro traz implicações importantes na condução da pesquisa. O projeto de estudo e pesquisa deve nortear bem qual o caminho será escolhido. O caminho objetivo tem como indicadores de qualidade de vida a saúde, condições físicas, salários, moradia e outros indicadores observáveis e quantificáveis; há padrões absolutos para acessar estas variáveis que são usadas para determinar ou definir QV. Vê-se na literatura (NAJMAN; LEVINE apud SPILKER, 1996) que o uso destes caminhos objetivos envolve discordâncias sobre quais indicadores são relevantes, faltando o conhe­cimento da associação entre condições objetivas de vida e a percepção subjetiva destas condições. Alguns estudos têm demons­trado que as condições objetivas de vida são apenas sutilmente relacio­nadas à experiência subjetiva de qualidade de vida (PALMORE; LUIKART apud SPILKER, 1996; CAMPBELL, CONVERSE; RODGERS apud SPILKER, 1996). Neste último estudo citado, os autores demons­tra­ram que os idosos negros, nos Estados Unidos da América do Norte, referiam níveis maiores de felicidade do que os idosos brancos, em contradição com as suas condições objetivas de vida inferiores.

Já os caminhos subjetivos servem para acessar as percep­ções qualitativas das experiências de vida. Estes caminhos devem considerar mais as avaliações idiosincrásicas por parte das pessoas e não as variáveis com os padrões absolutos de qualidade de vida; eles acessam os sentimentos humanos, considerando-os qualidade de vida. Os estudos subjetivos têm identificado algumas dimensões existenciais que podem ser relacionadas a uma ótima QV: relacionamentos sociais positivos; estabilidade e conformidade frente às expectativas para desenvolver uma gama de papéis; e uma disparidade mínima entre expectativas e realizações. A primeira dimensão pode ser melhor representada pelos relacionamentos conjugais e familiares (BHARADWAJ; WILENING apud SPILKER, 1996; WILKENING; Mc GRANAHAN apud SPILKER, 1996; CAMPBELL, CONVERSE; RODGERS apud SPILKER, 1996; WEAVE apud SPILKER, 1996). Entretanto, as pessoas viúvas, divorciadas e separadas expressam uma pior satisfação com a vida (ORDEN; BLACKBURN apud SPILKER, 1996; NEAR, RICE; HUNT apud SPILKER, 1996). Quanto à segunda dimensão, pode-se citar que as mulheres ame­ricanas mais jovens, que têm condições de escolher entre os pa­péis de lides do lar e de trabalho fora de casa são mais felizes que aquelas que sentem não ter escolha (ORDEN; BLACKBURN apud SPILKER, 1996). Por último, o nível de satisfação com a vida está relacionado com a disparidade entre as metas e as realizações pessoais (CANTRIL apud SPILKER, 1996). De acordo com o grau de sucesso que as pessoas vão alcançando as suas metas impostas a si mesmas em diferentes estágios da vida, elas vão referir melhor qualidade de vida.

 

ETNIA E QUALIDADE DE VIDA

Inicialmente, cabe ressaltar que etnia não é a mesma coisa que raça, embora uma esteja justaposta a outra. Raça é um fenômeno biológico, uma coleção de características físicas que um grupo compartilha desde os seus ancestrais comuns (MOLMAR apud SPILKER, 1996). A etnicidade é uma categoria cultural. Os membros de um grupo étnico compartilham certas normas, valores, crenças e hábitos devido a um mesmo passado. Este último pode ser representado por experiências históricas, isolamento geográfico, religião, linguagem ou raça. A etnicidade significa que eles têm uma identidade com um grupo étnico e se excluem das adoções culturais de outros grupos (KOTTAK apud SPILKER, 1996). Os estudos de QV deveriam focalizar as percepções culturais e étnicas, e não raciais, do ser humano. A seguir, alguns exemplos teórico-práticos.

Encontra-se, na literatura, quatro tipos de estudos sobre QV com grupos étnicos: indicadores sociais objetivos de QV; indi­ca­dores sociais subjetivos de QV; o racismo institucional; e o do idoso. Os indicadores sociais objetivos de QV são variáveis sócio-demográficas (MAYNARD apud SPILKER, 1996; MARIANTE apud SPILKER, 1996). Mariante (1984) examinou os indicadores sócio-demográficos de QV entre grupos étnicos no Hawai. Ele descobriu diferenças no salário de vários grupos, como os caucasianos, chineses, japoneses e coreanos com salários acima da média; enquanto os porto-riquenhos, hawaianos e filipinos estavam todos, significantemente, abaixo da média.

Outros estudos usaram indicadores sociais subjetivos de QV (PENNING apud SPILKER, 1996; THOMAS apud SPILKER, 1996; FINE; McKENRY apud SPILKER, 1996). Estes indicadores descreveram como os indivíduos avaliavam suas condições diversas de vida. Havia inúmeras medidas individuais de QV que acusavam o bem-estar com perspectivas diferentes. É necessário incluir, nos estudos, os domínios que estão sendo avaliados. Parece que um conjunto relativamente pequeno de medidas gerais de bem-estar com os seus domínios é suficiente para avaliar QV. Há um largo campo de evidências que mostram que há diferenças de valores e de qualidade de vida entre diversos grupos, em momentos diferentes (ANDREWS; WITHEY apud SPILKER, 1996; CAMPBELL apud SPILKER, 1996). Se há diferenças nos sistemas de valores entre grupos, então estas diferenças existem entre grupos étnicos (HUTCHINSON apud SPILKER, 1996).

PENNING apud SPILKER, 1996, estudou as percepções da QV, valores pessoais, sentimentos de alienação e atitudes políticas por indivíduos de 18 anos ou mais. Ele usou um indicador objetivo e três subjetivos: salário, seguridade econômica, estado de saúde e bem-estar total. O estado de saúde foi o preditor de QV mais importante para todos os grupos etários, exceto dos 30 a 49 anos, quando a seguridade econômica foi mais importante. A avaliação da saúde foi menor entre os poloneses, russos e alemães, e maior entre os nascidos nos Estados Unidos e no norte e sul europeu.

MCLEAN; SAKADAKIS apud SPILKER, 1996, refe­riram que as minorias étnicas, inevitavelmente, vivenciavam o estresse natural físico e social do aumento da idade numa “segunda pátria”. Tais estresses foram intensificados por problemas como a competição com as mudanças pessoais e culturais relacionadas à idade em um país diferente de sua terra natal. WILSON (apud SPILKER, 1996) referiu que “as pessoas que migram para um novo país começam uma nova vida, mas o seu passado elas não podem esquecer; elas carregam consigo as memórias, as atitudes e os relacionamentos”. O idoso étnico encontra problemas com as pressões econômicas, sociais e psicológicas para viver em uma sociedade em que há intolerância racial (BONEHAM apud SPILKER, 1996). Eles sofrem com o racismo e o precon­ceito quanto à idade e ao sexo (NATIONAL URBAN LEAGUE apud SPILKER, 1996; PALMORE; MANTON apud SPILKER, 1996). Além disto, os idosos étnicos sofrem com a pobreza (HUTCHINSON apud SPILKER, 1996).

Quanto ao racismo institucional, há vários estudos (LIESKE apud SPILKER, 1996; THOMAS; HUGHES apud SPILKER, 1996; Bullard; Wright apud SPILKER, 1996) em que os autores notaram que, nos últimos 25 anos, os negros dos Estados Unidos vivenciaram mudanças em seu status social. Por exemplo, as leis foram promulgadas para banir muitas formas de discriminação, novas oportunidades foram criadas e houve um declínio nas expressões de atitudes racistas contra os negros (SCHUMAN, STEEH; BOBO apud SPILKER, 1996). Entretanto, apesar destas mudanças, os negros formam um grupo em desvantagem. Os bran­cos referiram melhor bem-estar psicológico que os negros. Depois do controle das classes sociais, da faixa etária e do estado civil, nenhuma das medidas de bem-estar psicológico indicou que a condição dos negros melhorou ou piorou, significativamente, em relação aos brancos, entre 1972 e 1985. Isto sugere a contínua influência da etnicidade na determinação do bem-estar.

Em algumas pesquisas epide­miológicas com diversos grupos étnicos, sob a coordenação do Dr. Rubens Reimão, a significância da etnicidade tem sido demonstrada. Uma destas pesquisas foi realizada com 17 raizeiros de diversas etnias na cidade de Campo Grande-MS, com o título de “Brazilian folk medicine for the treatment plants as hypnotical in Campo Grande, state of Mato Grosso do Sul” (REIMÃO; SOUZA, 1998). Entre os entrevis­tados tinha-se negros, mulatos, índios terena, orientais e caucasianos. O objetivo desta pesquisa foi avaliar quais plantas medicinais eram prescritas, por populares, como sedativo/hipnótico, no tratamento da insônia. Todos os sujeitos prescreveram chás, em um total de 22 plantas diferentes.

Outros grupos étnicos, que vêm sendo estudados pelo mesmo grupo, são os indígenas, das tribos Bororo, em Meruri-MT, e Terena, Sidrolândia-MS e Dois Irmãos-MS, sobre os seus hábitos e distúrbios do sono. Estes trabalhos pioneiros têm se estendido desde as crianças até os idosos (REIMÃO, SOUZA; ALMIRÃO, no prelo). Há projetos de avaliação em curso dos índios da aldeia Xavante de Sangradouro-MT e dos Kadiewéu – de Bodoquena-MS. Além dos índios, este grupo de pesquisa avalia a comunidade negra de Furnas do Dionísio, Jaraguari-MS (REIMÃO et al., 1999); e os homens pantaneiros, que sofrem a miscigenação entre brancos, índios, latinos, orientais, negros, entre outros.

Com relação a questão da etnia, como um processo de iden­ti­dade de um povo, observou-se crianças indígenas Terena, inte­ra­gindo com elas através da confecção de aviõezinhos de papel. O povo indígena Terena, do próprio nome “aquele que vem da terra”, (FRANCISCO, 1997), pode um dia fabricar seus próprios aviões? Num primeiro momento, esta questão pode parecer um tanto estranha, porém, as crianças terena aprenderam a fazer “aviões” de papel em visitas recentes de pesquisadores da área do sono às aldeias Tereré e Córrego do Meio, Município de Sidrolândia-MS.

Na ânsia cientificista por conseguir dados para uma pes­quisa sobre os hábitos do sono das crianças das populações indígenas terena, o maior ensinamento veio dos indiozinhos, pois para conseguir informações fidedignas das mães sobre o sono de seus filhos, teve-se que brincar primeiro com as crianças, fabricando aviõezinhos de papel.

A ciência dotada de objetividade, especificidade e fidedi­gnidade, para conseguir pesquisar as populações indígenas, seja em qual campo de estudos for, necessita despir-se dos seus este­riótipos metodo­lógicos e propor-se a conhecer primeiro qual a “raiz” cul­tural e étnica da população estudada. Conhecer os hábitos de sono de um povo é conhecer o seu íntimo, sua vida não só física, psi­co­lógica e social, mas também sua história e cultura.

Os conteúdos teórico-metodológicos auxiliam a conhecer a ciência e a dispor da sua concretização, porém só o objetivo de pesquisa e o sujeito nortearão o prosseguimento fidedigno e real da mesma, principalmente em se tratando de outras culturas, por mais aculturadas que já estejam, como é o caso dos índios Terena.

Esta reflexão poderá servir, em especial, aos pesquisadores que trabalham com índios, pois, para conseguir conhecê-los, há de existir uma aproximação humana e, por vezes, simbólica. Com toda a aculturali­za­ção dos índios Terena, eles mantêm toda uma identidade e uma his­tó­ria, “guardada a sete chaves”, ou a oito, se é que um dia os ho­mens não índios poderão saber ao certo, principalmente acerca de seu sonho.

 

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