Com métodos alternativos, preparação física de excelência e comprometimento total, atacantes acima dos 30 anos brigam pelos gols das principais competições do Velho Continente
Na briga pela artilharia das principais competições da Europa, os 30 são os novos 20. Os atacantes veteranos vêm liderando as corridas nos campeonatos mais prestigiados e na Liga dos Campeões.
Aos 33 anos, Robert Lewandowski tem 13 gols na Champions e 32 na Bundesliga. Karim Benzema soma 25 na liga espanhola, aos 34. Ciro Immobile, de 32 anos, encabeça a lista na Itália, também com 25 gols. Wissam Ben Yedder era o goleador da Ligue 1 aos 31 até outro dia.
Esse cenário não é por acaso. Os avanços na ciência do esporte nas últimas décadas colaboram para prolongar carreiras. Somado a isso, os atacantes mais experientes da atual geração vestem a camisa da extrema dedicação. Seguem com fome de gols e títulos.
Confira nesta reportagem detalhes do trabalho diferenciado dos principais goleadores do futebol internacional.
CADA VEZ MAIS EXPERIENTES
São jogadores que se preocupam com cada detalhe da rotina. Robert Lewandowski é referência nisso. Seu quarto está sempre a 21°C, mesmo no verão, e sem nenhum eletrônico ligado. Ele faz exercícios de concentração habitualmente. Dorme virado para o lado esquerdo para preservar a perna direita, como manda o seu terapeuta de sono.
— Sei tudo o que fiz, posso ter orgulho da minha forma e da minha performance. Me sinto bem como nunca. Isso também significa que você pode mostrar o seu melhor futebol com 33, 34 ou 35 anos — afirmou Lewandowski em entrevista aos canais do Bayern de Munique, após ganhar o segundo prêmio da Fifa de melhor do mundo,em janeiro.
A atual temporada nem acabou e ele já está perto de igualar os 48 gols de 2020/21 pelo Bayern. Com 32 nesta Bundesliga, tem tudo para faturar de novo a Chuteira de Ouro (prêmio de artilheiro das ligas europeias). Lewandowski marcou 129 dos seus 309 gols no Campeonato Alemão depois dos 30 anos — mais de 41%. Sendo que chegou lá com 22.
Não é de hoje que os nomes com mais de 30 anos dominam a artilharia das cinco principais ligas da Europa e da Champions League. Isso aconteceu 46,6% das vezes nos últimos 10 anos.
Michael Owen foi um dos goleadores da Premier League logo na segunda temporada como profissional do Liverpool, aos 18 anos, em 1997/98. Naquela época, os veteranos raramente terminavam no topo da artilharia. Entre 1991/92 e 2000/01, isso ocorreu 15% das vezes — nenhuma na Espanha ou na Inglaterra.
Levantamento do ge, com base no histórico das primeiras divisões da Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália mais a Liga dos Campeões, mostra que, no geral, aumentou a média de idade dos artilheiros.
Destaques da artilharia das principais ligas da Europa nos últimos 30 anos – Infoesporte/ge.globo
Estudos apontam que a faixa etária predominante nas competições acima é entre 25 e 27 anos, idade em que os atacantes costumam ter o pico de desempenho. Por isso chama a atenção o fato de termos artilheiros cada vez mais veteranos. Mas uma pesquisa da Universidade de Vigo, da Espanha, mostrou que a média de idade dos jogadores da Liga dos Campeões subiu 1,6 ano de 1992/93 para 2017/18. O mesmo foi notado no Campeonato Espanhol e no da Alemanha.
— O processo de envelhecimento se dá em todas as posições. Jogadores estão se aposentando mais velhos e são capazes de manter por mais anos o alto nível de rendimento. Esse fenômeno não é específico do futebol, se vê em outros esportes. Se treina cada vez melhor, há mais controle e prevenção de lesões, e os jogadores se cuidam muito mais. Há uma mudança clara na forma de se entender o futebol — explicou ao ge o professor Carlos Lago Peñas, um dos responsáveis pela pesquisa.
RECURSOS PARA DRIBLAR O TEMPO
Lewandowski ainda é o artilheiro da Champions, mas como foi eliminado do torneio junto com o Bayern, pode ser ultrapassado por outro veterano que está arrebentando: Karim Benzema.
O atacante francês tem 39 gols em 39 jogos pelo Real Madrid nesta temporada, sendo 12 na Liga dos Campeões e 25 no Campeonato Espanhol. É o melhor período da carreira nesse aspecto — aos 34 anos.
Em 2015/16, quando tinha 28 anos, ele ficou fora de 16 dos 54 jogos do Real devido a lesões. E foi em 2016 que decidiu instalar uma academia em casa, para trabalhar individualmente à tarde depois dos treinos. Em 2021/22, ele ficou fora de seis das 47 partidas do time.
Hoje Benzema faz uso da ventosaterapia, tratamento que recorre a ventosas para melhorar a circulação sanguínea, além de aliviar dores. Ele também costuma treinar com equipamento de eletroestimulação muscular, sob a supervisão do treinador pessoal Javier Atalaya.
— Trabalhamos no mínimo uma vez por semana, no máximo duas, porque ele treina todo dia com o time. Faz comigo musculação e cardio com esse equipamento. É um jaleco de 18 eletrodos, que atua sobre nove zonas musculares. O eletrodo dá um impulso nas fibras mais profundas, o que permite trabalhar o músculo com mais intensidade. Uma sessão assim equivalente a quatro horas na academia. Também faço massagens para evitar rupturas e estiramentos. Benzema é como se fosse um jovem de 25 anos — contou Javier Atalaya, que trabalha há sete anos com o atacante, ao ge.
Mesmo com tudo isso, o craque não está imune ao ritmo frenético de jogos entre Real e seleção francesa. E a posição de atacante é uma das mais exigentes: arranques, mudanças de direção, pancadas de todos os lados, chutes a gol. Depois dos 30, o corpo não é o mesmo.
— É comum observarmos a partir dessa idade a queda nas capacidades físicas: força, velocidade, aeróbica. No atleta de elite, há perda maior de força e velocidade. É importante que ele faça treinos complementares, de fortalecimento, equilíbrio muscular, para tentar atenuar isso. E o atleta mais velho já sofreu muito impacto, e com o decréscimo da saúde articular por causa da idade, precisa fortalecer as articulações — explicou o fisiologista Guilherme Passos, da seleção brasileira.
A velocidade do metabolismo diminui, o que exige foco maior na alimentação. É cada vez mais comum jogadores terem os próprios nutricionistas e chefs de cozinha. A repetição de movimentos durante anos de treinos e jogos também gera desequilíbrios que precisam de atenção. O corpo passa a pedir mais tempo de recuperação.
Estudo publicado neste ano pelo pesquisador Carlos Lago-Peñas e colegas no Journal of Science and Medicine in Sport concluiu que jogadores do Campeonato Espanhol entre 2012/13 e 2019/20 diminuíram em 1,8% as ações em alta intensidade a cada ano, mas compensaram com a melhora das habilidades técnicas e táticas. A experiência também ajuda o futebolista a correr menos, escolher os melhores deslocamentos.
O zelo fora do dia a dia de treino complementa toda uma estrutura de instalações e profissionais que só os grandes clubes e federações têm condições de oferecer. GPS de monitoramento em treinos e jogos, anéis para examinar a qualidade do sono e fotos para fiscalizar o desgaste de partes específicas do corpo são só alguns exemplos.
O Centro de Treinamento do Bayern de Munique, em Säbener Straße, tem uma piscina com esteira subaquática e um sistema de contra-corrente para o programa de treino, regeneração e rehabilitação. Câmeras gravam os movimentos dos jogadores debaixo d’água e exibem em uma tela grande. O CT conta também com uma câmara frio de corpo inteiro e todo o departamento médico fica no mesmo prédio. Se um atleta se lesiona, pode fazer todos os exames ali mesmo.
Os avanços científicos também deram novas ferramentas para os artilheiros melhorarem em outros aspectos, como técnica e tática. Eles recebem em seus celulares dados de desempenho, vídeos sobre adversários, entre outros materiais elaborados pelas comissões técnicas.
Comentarista do grupo Globo, o ex-atacante Grafite ressalta outros pontos: o calendário de jogos do futebol europeu, menos apertado que o brasileiro, e o planejamento dos grandes clubes para com os atacantes de maior idade.
— Vejo a longevidade dos atacantes veteranos nas ligas europeias muito por conta do planejamentos das equipes, dos projetos no início de temporada. Se você vai contratar um Lewandowski, Cristiano Ronaldo, Immobile, Ibrahimovic, você tem um planejamento para esse atacante. Um esquema de jogo para ele, um sistema de jogo que o beneficia. O fato de não jogarem toda quarta e domingo como aqui no Brasil ajuda. Eles não conseguiriam ter o mesmo rendimento. A construção da equipe gira em torno deles, e o planejamento é seguido à risca — afirmou o ex-jogador do Wolfsburg, artilheiro da Bundesliga aos 30 anos, em 2008/09.
Giuseppe Signori, artilheiro da Lazio no início dos anos 90, e Ciro Immobile, goleador atual do time italiano
MOTIVAÇÃO E FOCO
Hoje há portanto mais instrumentos para atacantes seguirem em alto nível. Mas por que isso não acontece com todos? Outro componente comum a essas histórias é a determinação do indivíduo. Levar uma rotina regrada por tantos anos não é para qualquer um.
Que o diga Cristiano Ronaldo. Depois de completar 30 anos, ele marcou mais 289 gols em jogos oficiais (35% do total), foi eleito duas vezes o melhor do mundo e conquistou 16 títulos, incluindo o tricampeonato da Liga dos Campeões — sendo o artilheiro — pelo Real Madrid e a Eurocopa-2016 com a seleção de Portugal.
Há outros exemplos conhecidos do torcedor brasileiro. Hoje “quarentão”, Zlatan Ibrahimovic fechou a temporada 2015/16 com 50 gols pelo Paris Saint-Germain aos 34 anos. Ciro Immobile, da Lazio, está a caminho de ser o artilheiro da Serie A pela quarta vez, aos 32.
Wissam Ben Yedder é menos midiático do que CR7, mas também reconhecido pela mentalidade. Sua trajetória no futebol foge do padrão: não fez categoria de base e saiu do amador para o profissional aos 18 anos. Foi convocado pela seleção francesa pela primeira vez em 2018.
Ben Yedder está com 31 anos e na terceira temporada no Monaco. Apesar da personalidade introvertida, os últimos quatro técnicos o escolheram como capitão por liderar pelo exemplo. Foi o artilheiro da Ligue 1 em 2019/20, com 29 gols, e hoje disputa com Mbappé o topo.
O centroavante raramente se machuca. Não foi relacionado para só um jogo em três anos de Sevilla por cautela do técnico. Ficou fora de quatro partidas pelo Monaco, sendo duas por testar positivo para Covid-19. Ben Yedder conta com treinador particular, outros profissionais e academia completa em casa. Quando não se sente 100% tecnicamente, faz exerícios individuais para corrigir minúcias.
— Esta nova geração de jogadores tem mais ferramentas em todos os aspectos de sua vida profissional. Hoje há tantos aspectos, tantas possibilidades de se recuperar melhor, de prevenir lesões, de ter um melhor desempenho. O nível de conhecimento, estudo e trabalho que vem sendo feito em torno dos atletas e do esporte em geral os coloca, se quiserem, em condições de implementar essas ferramentas no seu dia a dia, para que possam jogar mais e melhor — comentou Meïssa N’diaye, representante de Ben Yedder, CEO e fundador da Sport Cover.
O alto grau de dedicação não é exclusividade dos atacantes. O vestiário do Real Madrid tem também os exemplos dos “trintões” Toni Kroos e e Luka Modric. O croata, em particular, disputou 80% dos jogos do time espanhol nesta temporada, com média de 78 minutos em campo, e fez outras seis partidas por sua seleção. Aos 36 anos.
Thiago Silva procura checar os dados físicos de seus jogos pela Seleção e entender quais as melhores estratégias para se recuperar. Analisa junto com a comissão técnica quais e por que determinadas regiões do corpo foram mais exigidas durante as partidas.
Tal comprometimento estimula os mais jovens, como Rodrygo e Vini Jr, de 21 anos. Os dois dispõem de equipe de preparação física particular desde o início da adolescência. Eles representam uma nova geração de atacantes cada vez mais “atletas”, ensinados desde cedo na carreira a ter atenção em cada detalhe, do café da manhã a hora de dormir.
— O futebol mudou, é muito mais físico hoje, muito mais intenso e corrido. Na minha época era muito mais técnico. Para jogadores que eram meias não era obrigatório ter uma força física. Zagueiro não tinha velocidade, os caras velozes no time eram os pontas, no máximo os laterais. Hoje o jogo está muito mais rápido como um todo, e todos precisam ser mais velozes, do zagueiro ao centroavante. Em função disso, essa geração de agora tem que se cuidar muito mais, por isso acredito que começou a ter muito mais protocolos fora do clube — disse Nenê, meia-atacante do Vasco. Ele foi o último brasileiro a ser artilheiro de uma grande liga da Europa, em 2011/12, pelo PSG, aos 30 anos.
