Entenda o que é ‘westsplaining’ e por que a arrogância ocidental já revolta a Europa Oriental

SÃO PAULO — Intelectuais do Leste europeu alertam — como se não bastassem os horrores da guerra, com milhares de mortos e mais de 5% da população ucraniana refugiada após a invasão russa, a região agora sofre com outro mal, no campo das ideias: o westsplaining.

O termo, neologismo criado a partir do mansplaining (quando um homem, de forma professoral, explica algo óbvio para uma mulher, sem considerar que ela pode entender até mais profundamente do tema), viralizou nas redes sociais da Europa Oriental. E a chiadeira tem endereço certo: colegas do lado de cá do planeta que pontificam sobre a região de forma tão assertiva quanto leviana, na percepção de quem vive em países que por mais de quatro décadas estavam do lado de lá da Cortina de Ferro.

Gatilho para a revolta

Para dimensionar as acusações de ignorância, e, em casos isolados, até desonestidade intelectual, de vozes ocidentais dos mais variados espectros políticos, a revista progressista americana The New Republic encomendou aos pesquisadores de origem polonesa Jan Smolenski e Jan Dutkiewicz a tarefa de dissecar, em artigo publicado em sua mais recente edição, as razões da indignação contra determinadas opiniões de estrangeiros sobre um dos mais sérios conflitos armados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

—Veja bem, não propomos o cancelamento de pensadores de fora da região, fundamentais para a análise de aspectos históricos, sociais e contemporâneos locais, isso seria ridículo. Westsplaining é um termo crítico que usamos para falar de jornalistas e acadêmicos que impõem esquemas analíticos e prescrições políticas do Ocidente a países sobre os quais muitas vezes conhecem pouco ou tratam como área habitada por cidadãos de segunda classe no tabuleiro geopolítico global — disseram por e-mail ao GLOBO Smolenski, estudioso da região na Universidade de Varsóvia, com artigos publicados nos principais veículos da imprensa polonesa, e Dutkiewicz, professor visitante na Escola de Direito da Universidade de Harvard.

A senha para a insurgência intelectual digital local contra talking heads e cabeças premiadas da academia ocidental — como o americano John Mearsheimer, um dos papas contemporâneos da teoria realista nas relações internacionais — foi a tese de que a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) levou à inevitabilidade da invasão russa. Já foram alvos, entre outros, à direita, o americano Ted Galen Carpenter, do Instituto Cato, e o apresentador da Fox Tucker Carlson, e, à esquerda, o alemão Wolfgang Streeck e o antineoliberal grego Yannis Varoufakis, sem esquecer do economista Jeffrey Sachs.

Sem nuances

A entrevista de Mearsheimer, publicada na New Yorker cinco dias após a entrada de tropas russas na Ucrânia, se destacou por aprofundar argumentação defendida desde o governo Bill Clinton (1993-2001) pelo cientista político e estrela da Universidade de Chicago: a de que Washington e seus aliados europeus alimentaram um conflito armado na região ao “atrair” a Ucrânia para as fileiras da Otan. E que, portanto, “dividem responsabilidade central pela crise”.

O pano de fundo histórico é conhecido: após a dissolução da União Soviética e a unificação alemã, a Otan teria prometido à Rússia que não se expandiria em direção à sua antiga área de influência. Mas já em 1997 três países que fizeram parte do Pacto de Varsóvia – Polônia, República Tcheca e Hungria — iniciaram o processo de filiação à aliança militar. A expansão seguiu e, em 2007, ignorando as queixas russas, a “política de portas abertas” abriu caminho para Geórgia e Ucrânia entrarem na organização ocidental.

— Vladimir Putin assim, teria sido forçado a reagir, com a invasão da Geórgia e as duas da Ucrânia. Ah, isso é puro westsplaining refém da linha de pensamento da Guerra Fria — rebatem os dois Jans, em sintonia com setores liberais e de esquerda poloneses, ucranianos e lituanos.

O que a tese exclui, argumentam, são dois aspectos cruciais da realidade local: a autonomia de Kiev e as nuances históricas e socioeconômicas das relações russo-ucranianas.

— Há um divórcio claro dos westsplainers da realidade local ao reduzirem Ucrânia, Polônia e os países bálticos, por exemplo, a nações cuja função é amortecer tensões expansionistas de impérios rivais. Eximem assim o Kremlin da responsabilidade pela invasão de um país soberano e afrontam o direito cidadão de milhares de ucranianos de decidirem seus destinos – defendem.

Carapuça latina

A carapuça do westsplaining também cabe, de acordo com os estudiosos, em parte da esquerda latino-americana:

— Há uma projeção fora do lugar da crítica ao imperialismo americano na América Latina. Desconsidera-se que a ação ianque na Europa Oriental foi, por uma série de razões, diametralmente oposta. Aqui, ditaduras foram derrubadas.

A dupla provoca parte da intelligentsia ocidental ao afirmar ser intelectualmente impossível culpar pela invasão russa o anseio de lideranças políticas como o presidente Volodymyr Zelensky e da maioria da população ucraniana por segurança nacional sem também condenar o processo de transformação democrática do país, impulsionador da defesa de valores celebrados como “ocidentais”, como o respeito ao voto da maioria da população e o aprofundamento da consciência cidadã.

— Não vamos tão longe a dizer que parte da solidariedade do Ocidente à Ucrânia carrega, portanto, um quê de falácia. Mas convidamos os westsplainers a reexaminarem suas análises a partir do ponto de vista de quem eles de fato identifiquem como sendo os oprimidos na Europa Oriental neste momento — desafiam.

Brancos e ‘brancos’

Outras críticas aos westsplainers apontam para conclusões reducionistas calcadas em assertivas como a de que o conflito é de brancos contra brancos (“sem levar em conta as noções de quem de fato é considerado ‘europeu’ e as muitas rusgas entre vizinhos na região”) ou a de que a calorosa recepção aos refugiados se dá por solidariedade pautada por cor da pele ou profissão religiosa (“e não, entre outros motivos, pela solidariedade gerada, gerações a fio, pela sensação de subjugação aos russos, como se deu com os exilados muçulmanos da Chechênia invadida pelos mesmos russos e abrigados na Polônia”).

— Analisar uma guerra é tarefa complexa. E, para de fato auxiliar as pessoas a compreender movimentos muitas vezes repletos de nuances, o que pedimos é que se preste atenção na realidade local, se leiam mais fontes do centro nervoso da ação, e se evite pitacos genéricos feitos do outro lado do planeta — aconselham os acadêmicos.