E essa visão, de um presidente radiante na capital mundial do jogo, talvez seja o melhor simbolismo da bagunça financeira em que Barcelona se encontra atualmente e da confiança sem limites do homem que diz ter um plano para corrigi-la. O Barcelona, no verdadeiro estilo de Las Vegas, está dobrando a aposta.
Uma equipe que há menos de um ano não conseguia honrar sua enorme folha de pagamento; um negócio que, com perdas de 487 milhões de euros (cerca de R$ 2,6 bilhões) no ano passado, foi descrito por seu próprio presidente-executivo como “tecnicamente falido”; um clube que atualmente está sobrecarregado com dívidas de mais de US$ 1,3 bilhão (cerca de R$ 7 bilhões), decidiu que a melhor maneira de sair de uma crise causada por erros financeiros, altos salários e contratos extravagantes é gastar.
Vendeu um ativo do clube após o outro para arrecadar cerca de US$ 700 milhões (cerca de R$ 3,7 bilhões) para ajudar a equilibrar suas finanças. No entanto, está avançando em um projeto de US$ 1,5 bilhão (R$ 8 bilhões), com financiamento arranjado pelo Goldman Sachs, para reformar e modernizar seu icônico estádio, o Camp Nou, que, devido à pressa em arrecadar fundos, terá pela primeira vez os naming rights de um patrocinador. E pagou mais dinheiro em novas contratações neste verão do que quase qualquer outro grande time da Europa, com uma nova contratação badalada anunciada com grande barulho quase semanalmente.
Os gastos desenfreados levantaram suspeitas entre os rivais do Barcelona e preocupações entre alguns de seus 150 mil sócios sobre a viabilidade financeira do clube se a grande aposta de Laporta não der certo. Mas o presidente, em uma entrevista na sede do New York Times em Manhattan, ofereceu repetidas garantias de que sabe exatamente o que está fazendo:
“Não sou um jogador”, declarou Laporta: “Corro riscos calculados”.
O risco, no entanto, tornou-se uma constante no Barcelona. Laporta foi eleito presidente pela segunda vez no ano passado, depois que seu antecessor e a diretoria anterior foram depostos pelo que resultou no colapso financeiro e esportivo simultâneo de um dos maiores clubes do mundo. Enquanto muitos esperavam que o time catalão se reconstruísse lentamente, para viver dentro de suas possibilidades em um período de austeridade humilhante, o presidente decidiu guiar o Barcelona em um curso completamente diferente. Laporta diz que não tem escolha a não ser tentar vencer todos os anos.
“É uma exigência”, disse.
Mais de US$ 700 milhões (cerca de R$ 3,7 bilhões) foram arrecadados com a venda de partes dos negócios do clube. Vinte e cinco por cento dos direitos televisivos domésticos — por 25 anos — foram para um fundo de investimentos americano. O serviço de streaming de música Spotify assinou um contrato de quatro anos para colocar seu nome no Camp Nou e em um local ainda mais valioso, na parte frontal das camisas do time catalão. Na segunda-feira, o Barcelona anunciou a venda de 25% de sua empresa de produção, Barca Studios, para uma companhia de blockchain, a Socios. Está em negociações para vender parte de sua empresa de licenciamento em seguida.
Em vez de pagar a dívida do clube, no entanto, o dinheiro foi em grande parte para contratar novos talentos: 45 milhões de euros para o atacante polonês Robert Lewandowski (cerca de R$ 240 milhões), 50 milhões de euros para o zagueiro francês Jules Koundé (cerca de R$ 270 milhões), quase 58 milhões de euros (cerca de R$ 310 milhões) para o ponta brasileiro Raphinha. Vários outros jogadores vieram como agentes livres, sem contrato. E mais reforços podem estar a caminho.
Para Laporta, a contratação de Lewandowski, que em breve completará 34 anos, e as demais fazem todo o sentido. É parte do que ele afirma ser um “ciclo virtuoso” no qual o sucesso em campo fortalecerá as finanças da equipe por meio de um aumento na receita. A estratégia é uma repetição da receita que ele usou em seu primeiro mandato como presidente, um período de sete anos que começou em 2003 e terminou com um time do Barcelona celebrado como um dos melhores da história do futebol.
“Na minha época, colocamos as expectativas muito altas e fomos bem-sucedidos”, disse ele sobre seu mandato anterior: “E os torcedores do Barça em todo o mundo, cerca de 400 milhões de torcedores em todo o mundo, exigem um nível de sucesso”.
Mas os tempos e as receitas mudaram. O clube que Laporta herdou em 2003 também estava atolado em uma crise financeira, com perdas de quase o dobro de sua receita e dívidas crescentes. Mas os números eram dez vezes menores naquela época, e o clube ainda não havia iniciado o processo de se transformar no gigante comercial que se tornou.
As equipes daquela época também não foram obrigadas a cumprir restrições exatas nos gastos com jogadores que foram aplicadas pela liga espanhola, e são essas regras que representam o obstáculo mais imediato ao plano de renascimento de Laporta. Como a La Liga insistiu que não vai flexibilizar as regras em um único euro para o Barcelona, o clube ainda não conseguiu registrar nenhuma das novas contratações deste verão. Com medo de que a equipe não cumpra o prazo, a liga ainda não usou nenhum desses jogadores, nem mesmo Lewandowski, o atual melhor jogador do mundo, em nenhuma de seus produtos para a nova temporada.
As vendas de ativos mais recentes devem abrir caminho para o Barcelona cumprir as regras financeiras da La Liga e registrar seu batalhão de novas contratações, insistiu Laporta.
“Essa foi uma decisão que, honestamente, eu não queria tomar”, disse ele sobre as vendas, mesmo que elas, pelo menos temporariamente, levem o balanço do Barcelona para o lucro.
Esse tipo de manobra — um misto de ousadia e arrogância — é típico de Laporta, que se beneficia de um culto à personalidade inigualável por presidentes anteriores durante a história moderna do clube.
É por isso que ele pode se colocar nos outdoors de Las Vegas e pode continuar defendendo publicamente a Superliga Europeia, de curta duração e amplamente criticada.
Mas a popularidade de Laporta também é o motivo pelo qual ele pode se safar de riscos financeiros que provavelmente seriam inaceitáveis se tivessem sido propostos por presidentes anteriores, e particularmente por seu antecessor impopular, Josep Maria Bartomeu.
“O que aconteceria se Bartomeu fizesse o mesmo que o atual presidente está fazendo?”, disse Marc Duch, um membro do clube que ajudou a derrubar a diretoria anterior: “Todos nós estaríamos pegando fogo, apontando para ele e tentando demiti-lo.”
Laporta recebe um espaço mais amplo e até é apoiado por defensores fanáticos nas mídias sociais, disse Duch, por causa de seus vínculos com a era de ouro anterior. “Há uma história de sucesso por trás de Laporta”, disse Duch: “Ele tem uma base de fãs enorme: ele é como o Papa, como Kim Jong-un: o líder supremo”.
O estilo de liderança intensamente pessoal de Laporta também surgiu em outras mudanças no clube. Para concorrer à presidência, ele teve primeiro que levantar uma garantia de 125 milhões de euros (cerca de R$ 670 milhões), uma caução que foi estabelecida essencialmente como proteção contra má gestão. Mas os membros do clube recentemente concordaram em decretar mudanças que significam que ele não tem mais nenhum risco pessoal, segundo Victor Font, empresário que desafiou Laporta à presidência. Por causa disso, disse Font, Laporta – ao pedir dinheiro emprestado e vender ativos – está arriscando o futuro do clube, não o seu.
“Se as coisas não derem certo”, disse Font, “estaremos num beco sem saída”.
As regulamentações de conflito de interesses também foram alteradas discretamente no ano passado, levando uma série de amigos de Laporta, ex-parceiros de negócios e até membros da família a cargos executivos. Para o presidente do Barcelona, essas mudanças foram essenciais diante do desafio que herdou. “Preciso ter as pessoas em quem confio”, disse ele. Mas o círculo continua a encolher: um executivo-chefe nomeado por Laporta se demitiu em poucos meses; em vez de substituí-lo, Laporta assumiu suas funções.
Ao mesmo tempo, ele teve que reconstruir a confiança com um grupo de jogadores e persuadir muitos a aceitar cortes salariais, em alguns casos no valor de milhões de dólares, ao mesmo tempo em que o clube está gastando somas de oito dígitos em novos talentos. Laporta descreveu os jogadores que aceitaram cortes salariais como “heróis” e insistiu que, reduzindo sua folha salarial e dispensando alguns jogadores com altos salários, os recém-chegados se encaixariam em uma estrutura salarial cuidadosamente elaborada. Mas o caminho para chegar lá nem sempre foi agradável.
Um jogador que até agora se recusou a aceitar um corte salarial ou uma mudança para um novo clube é Frenkie de Jong, um meio-campista holandês de 25 anos adquirido no verão de 2019 ao custo de quase US$ 100 milhões (cerca de R$ 530 milhões). De Jong foi objeto de intensa especulação durante todo o verão, já que o Barcelona pressionou publicamente para que ele concordasse com um salário reduzido – ele já havia aceitado em reduzir 17 milhões de euros (cerca de R$ 90 milhões) – ou aceitar uma mudança para um novo clube.
Mas de Jong deixou claro que quer ficar na Espanha e, embora Laporta tenha declarado seu “amor” pelo jogador e dito que não estava à venda, acrescentou que o holandês precisava “ajudar o clube” reestruturando seu salário. Os sindicatos e o presidente da liga espanhola alertaram o Barcelona contra exercer pressão sobre De Jong e, em resposta, Laporta disse que seu clube pagará a De Jong o que ele deve. “Ele tem um contrato e nós seguimos o contrato”, disse Laporta.
Muito da situação atual do Barcelona, ironicamente, pode ser atribuída à era de sucesso que desfrutou durante o primeiro mandato de Laporta. O time jogou um tipo de futebol inigualável, produzindo uma série de troféus, mas também uma equipe de superestrelas populares com salários cada vez maiores. Nenhum jogador personificou mais essa escalada do que Lionel Messi, cujo último contrato com o Barcelona valia cerca de US$ 132 milhões (cerca de R$ 700 milhões) por ano.
À medida que as dívidas do Barcelona cresciam, no entanto, a assinatura de um novo contrato de Messi que se alinharia com as regras financeiras da La Liga tornou-se impossível. O argentino se despediu de maneira chorosa do Barcelona, juntando-se ao Paris Saint-Germain a custo zero. Laporta, que havia prometido manter o camisa 10 na campanha à presidência, desde então sugeriu melancolicamente que gostaria de trazê-lo de volta.
“Sinto que tenho, como presidente, uma dívida moral com ele para dar a ele o melhor momento de sua carreira, ou dar-lhe um momento melhor, para o fim de sua carreira”, disse Laporta, sem dar explicações sobre como isso pode ser feito.
A relação, entretanto, está desgastada: O presidente, em campanha perpétua, continua a sugerir que tentará trazer Messi para casa. O argentino já havia expressado sua frustração com a forma como Laporta descreveu sua saída, e seu pai teria pedido ao presidente do Barcelona que parasse de falar sobre seu filho em público.
A discussão de como resolver essa situação, porém, pode vir mais tarde. O mesmo vale para perguntas difíceis sobre onde e como o Barcelona continuará encontrando fluxos de receita cada vez maiores em uma economia pós-pandemia, ou sobre o que fará se não puder registrar todas as suas contratações, ou o que acontecerá no próximo ano, ou no ano seguinte, quando a conta de nove dígitos vencer.
Laporta está vivendo no presente. “Vencer”, disse ele, “é uma motivação humana universal”.
Mas agora ele está sem tempo. O presidente do Barcelona termina educadamente a entrevista, dizendo que precisa sair correndo. Ele tem uma audiência no Goldman Sachs, para discutir um novo acordo de financiamento.