Ataques em várias frentes na Ucrânia dispersam tropas da Rússia, que pode sofrer escassez de soldados

A Inteligência americana diz que a totalidade dos até 190 mil soldados russos que estavam concentrados na fronteira já ingressou na Ucrânia. Ainda assim, há indícios de que o cobertor das tropas russas destacadas seja curto para assegurar a ocupação do território invadido.

Cada frente de ataque e cada território ocupado significam que as tropas russas se tornam mais rarefeitas. Mesmo após uma conquista — como, por exemplo, a de Kherson, no Sul — é necessário destacar soldados para manter as áreas dominadas e garantir cadeias de suprimentos.

O Exército da Rússia atualmente conduz cercos totais ou parciais nas cidades ucranianas de Mariupol, no Sudeste, de Sumy, no Nordeste, de Kharkiv, no Leste, e de Chernihiv, no Norte. Há mais de uma semana está em andamento um esforço para cercar Kiev, o mais importante objetivo da invasão, e também há preparações para ataques em breve contra Odessa, no Sul, e Zaporíjia, no Sudeste — antes de um ataque a Dnipro, esperado em seguida.

A dúvida é se haverá capacidade para tanto, conforme a guerra se prolonga, os soldados se extenuam e os equipamentos se desgastam.

O mapa da ofensiva

 

 

 

 

 

 

“Parece que os russos tentam simultaneamente dar conta de muitas missões diferentes com uma quantidade limitada de soldados”, escreveu nesta quarta-feira Philips O’Brien, professor de Estudos Estratégicos da Universidade St. Andrews, na Escócia. “Cada um destes lugares [atacados] exige um número significativo de tropas e de linhas de suprimentos. Isso é possível com o atual contingente?”

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A escassez de soldados pode ser um dos motivos para a grande ofensiva terrestre contra Kiev ainda não ter começado. Apesar de já estar presente em subúrbios a noroeste, oeste e leste da capital, é incerto quando os milhares de soldados concentrados a cerca de 35 km da cidade serão postos em marcha.

Na terça-feira, o Ministério da Defesa da Ucrânia informou que a Rússia destacou mil mercenários do grupo Wagner — uma sombria empresa militar privada russa, agora rebatizada Liga — e membros das forças especiais chechenas para perto de Kiev.

Um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), um centro de Washington que monitora o conflito, classificou como “incomum” o uso de mercenários e combatentes chechenos “para liderar um ataque”. “Provavelmente isso indica que os militares russos enfrentam dificuldades para acumular poder de combate suficiente neste eixo, a partir das unidades militares convencionais disponíveis.”

Apesar disso, os analistas militares do grupo entendem que as Forças Armadas russas concluíram ações para reorganizar a sua cadeia logística e o ataque contra Kiev acontecerá ainda nesta semana.  Segundo eles, o Exército russo dedicou a última semana a “concentrar suprimentos e reforços, tentar avançar e estabilizar suas linhas e atacar a cidade por ar, artilharia e mísseis, provavelmente destinados a desmoralizar e danificar os defensores de Kiev”.

Já outros observadores, como Fred Kagan, pesquisador de temas militares no American Enterprise Institute (AEI), entendem que o ataque contra Kiev ainda não é iminente, e continuará enquanto isso um longo cerco. Segundo ele, “os russos continuam a lidar com o fato de que seu plano não está dando certo”.

— O plano inicial era chegar dirigindo a Kiev e serem recebidos com flores, mas isso não aconteceu — afirmou, num podcast do instituto. — Ao fim e ao cabo, concederam semanas aos ucranianos para prepararem a defesa da cidade.

No Sul da Ucrânia, a área onde as forças russas registram mais sucessos, espera-se que as tropas russas evitem se empenhar numa ofensiva para conquistar Mykolaiv, preferindo dirigir-se direto para Odessa, última grande cidade a Oeste, que deve ser atacada por meio de uma operação anfíbia, com o desembarque de tropas em seus arredores.

A própria geografia natural de Mykolaiv ajuda a explicar por que a cidade será evitada: construída em uma série de curvas do rio Bug Meridional, onde o rio deságua em uma grande enseada do Mar Negro, Mykolaiv é naturalmente fortificada, e um ataque demandaria muitos recursos.

Enquanto lida com suas diversas frentes, emergem relatos de soldados muito jovens no front. O Ministério da Defesa da Rússia reconheceu nesta quarta-feira que alguns recrutas participam do conflito com a Ucrânia, após o presidente Vladimir Putin várias vezes negar isto e afirmar que apenas soldados e oficiais profissionais participavam da ofensiva. O ministério disse que alguns deles foram feitos prisioneiros de guerra pelo Exército ucraniano, e disse que “praticamente todos” foram retirados para a Rússia.

Risco estratégico

Segundo o general aposentado australiano Mick Ryan, hoje ligado ao Instituto da Guerra Moderna de West Point, citando fontes de inteligência não identificadas, a Rússia enviou até 55% de suas forças de combate terrestres para a Ucrânia “e assumiu um grande risco estratégico ao implantar uma porcentagem tão significativa de seu poder de combate terrestre em uma única missão”.

De acordo com Ryan, em breve os russos podem precisar começar a planejar o envio de mais reforços e usar forças rotativas. Tanto humanos quanto equipamentos precisam de pausas no combate para manter a eficácia em médio e longo prazos. Isto fará com que a Rússia precise fazer escolhas sobre outros objetivos, dentro e fora de suas fronteiras, diz ele. “A importância de seus objetivos estratégicos na Ucrânia justifica a retirada de mais tropas russas de outras missões e guarnições para reforçar uma força de combate cansada e degradada na Ucrânia?”, afirmou.

Enquanto a campanha se prolonga, os russos negociam a abertura de corredores humanitários com a Ucrânia, supostamente com a intenção de proteger civis. A despeito de sua alegada intenção compassiva, esses corredores permitem que suas forças se reabasteçam e se reforcem, e podem servir a objetivos militares — o bombardeio indiscriminado das cidades.

“Do ponto de vista da guerra urbana, os corredores levam à remoção de civis das cidades. Isso permite que lançar mais bombardeios contra as cidades, pois as restrições das leis da guerra ao uso da força, ao uso de armas e a matar civis, assim como a condenação internacional, serão menores”, disse Franz-Stefan Gady, analista militar do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres.

Estes bombardeios dolorosos podem, assim, lentamente minar a resistência ucraniana. Isto verifica-se já em Mariupol, onde nesta quarta-feira autoridades relataram ataques contra áreas civis, incluindo um hospital infantil, e contabilizaram um total de mais de 1.200 civis mortos desde o início da invasão.

“A estratégia da Ucrânia parece ser a de defender as cidades e fazer as forças russas sangrarem. E eles estão fazendo isso bem. Esta é uma boa estratégia de curto prazo, se você acha que os russos vão desistir da luta. Mas os ucranianos enfrentam um cerco a longo prazo”, afirmou Bill Roggio, editor do Long War Journal.

FonteLong War Journal.